O ex-presidente americano Donald Trump chega à primária de New Hampshire, que será realizada na terça-feira (23/01), como pré-candidato favorito à indicação do Partido Republicano para concorrer à Presidência dos Estados Unidos.
O favoritismo de Trump, já apontado por diversas pesquisas, foi confirmado na semana passada, com sua vitória na primeira prévia do calendário eleitoral americano, em Iowa. Naquele Estado, Trump registrou 51% dos votos e vantagem de 30 pontos sobre o segundo colocado, o governador da Flórida, Ron DeSantis.
No domingo (21/1), DeSantis anunciou sua desistência da corrida presidencial de 2024 e manifestou apoio a Trump. O movimento deixou Nikki Haley, ex-embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas, como a única rival significativa de Trump no partido.
O desempenho de Trump, apesar de o ex-presidente ter sido indiciado criminalmente quatro vezes e de esforços em vários Estados para que seu nome seja retirado das cédulas eleitorais das primárias, contrasta com a situação do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro.
Desde que deixaram o poder, ambos derrotados em suas tentativas de reeleição, os dois líderes enfrentaram diversos processos na Justiça. No entanto, enquanto Trump está de volta à disputa eleitoral, Bolsonaro permanece inelegível até 2030.
Vale lembrar que Bolsonaro já recebeu uma condenação em tribunal, enquanto Trump ainda não. Mesmo assim, o americano poderia concorrer à Presidência de qualquer maneira, ainda que fosse sentenciado.
Essas disparidades são fruto de diferenças importantes nos sistemas judiciais e eleitorais dos dois países.
Diferentemente do Brasil, os Estados Unidos não têm um Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas sim um sistema eleitoral descentralizado, a cargo de cada um dos 50 Estados.
No Brasil, foi uma decisão do TSE, em junho do ano passado, que declarou Bolsonaro inelegível por oito anos, contados a partir das eleições de 2022, por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.
O caso se referia a uma reunião com embaixadores estrangeiros realizada em julho de 2022, a menos de três meses da eleição brasileira, na qual o então presidente divulgou informações falsas questionando a segurança das urnas eletrônicas.
No sistema descentralizado dos Estados Unidos também não há uma lei como a da Ficha Limpa, que tem alcance federal no Brasil e estabelece critérios para impedir que pessoas condenadas por órgãos colegiados (tribunais de justiça, cortes de contas ou conselhos superiores) possam se candidatar a cargos eletivos.
"Acho que muita gente nos Estados Unidos viu o (que aconteceu no) Brasil com inveja, perguntando 'por que os Estados Unidos não podem fazer com Trump o mesmo que o Brasil fez com Bolsonaro'", diz à BBC News Brasil o analista político Brian Winter, editor-chefe da revista Americas Quarterly.
"E a razão tem a ver com algumas diferenças muito importantes entre os dois países, tanto em suas constituições quanto na história recente", observa Winter.
"O Brasil tem dispositivos constitucionais explícitos para banir candidatos que cometeram um crime. Os Estados Unidos não."
Bolsonaro enfrentou 16 processos no TSE. Ele foi condenado novamente pelo tribunal em outubro passado, por um caso relativo ao uso eleitoral do 7 de setembro de 2022, sendo declarado mais uma vez inelegível até 2030.
O ex-presidente brasileiro também foi alvo de centenas de processos em diferentes esferas judiciais, grande parte deles queixas-crimes apresentadas por parlamentares ou por cidadãos comuns, e teve diversos pedidos de investigação enviados à primeira instância. Muitos dos processos foram iniciados quando ainda estava no poder.
Algumas das ações contra Bolsonaro foram arquivadas, outros casos prescreveram, mas ele continua sendo investigado em pelo menos cinco inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF).
Bolsonaro nega as acusações.
Entre os casos envolvendo Bolsonaro no STF estão os que investigam milícias digitais, declarações falsas sobre a pandemia de covid-19, vazamento ilegal de informações sigilosas da Polícia Federal sobre ataque cibernético ao TSE e suposta tentativa interferência na Polícia Federal para proteger familiares e aliados políticos.
Há investigações sobre a responsabilidade pelos eventos de 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores de Bolsonaro, inconformados com sua derrota nas urnas, invadiram e depredaram prédios do governo na Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Também são investigadas suspeitas de inclusão de dados falsos no certificado de vacinação contra covid-19 e suposta apropriação indevida de presentes recebidos em viagens oficiais ao Exterior, em um caso que envolve joias recebidas da Arábia Saudita.
Nos Estados Unidos, Trump também é alvo de diversos processos em diferentes esferas judiciais, além de um esforço de vários Estados para retirar seu nome das cédulas de votação das primárias, sob a acusação de que ele teria cometido insurreição após perder a eleição de 2020.
Trump não reconheceu a derrota naquele pleito, e no dia 6 de janeiro de 2021, milhares de seus apoiadores invadiram o Capitólio, a sede do Congresso americano, em Washington.
As petições para remover o ex-presidente da disputa, com base em um dispositivo da 14ª emenda à Constituição, aprovada logo após a Guerra Civil americana, em 1868, fracassaram em mais de 10 Estados e ainda estão pendentes em outros 17. Mas em dois Estados, Colorado e Maine, a Justiça estadual já decidiu retirar o nome de Trump das cédulas.
Como o ex-presidente recorreu, o caso agora será julgado pela Suprema Corte do país, a mais alta instância da Justiça americana, em uma decisão que terá validade em todos os Estados e será a palavra final sobre a disputa. A apresentação oral de argumentos está marcada para 8 de fevereiro.
Além desses casos, Trump também enfrenta 91 acusações em quatro processos criminais.
O primeiro a ser julgado deverá ser o processo sobre os esforços de Trump para permanecer no poder após a derrota em 2020.
O julgamento, em Washington, está previsto para 4 de março, e é possível que haja um desfecho antes das eleições presidenciais de 5 de novembro.
A defesa argumenta que Trump seria imune nesse processo, porque estava no poder no período englobado nas acusações.
Assim como nos outros casos, Trump e seus advogados vêm tentando adiar a data de julgamento.
Pesquisas de opinião mostram que um quarto dos apoiadores de Trump acham que ele não deveria ser o candidato republicano caso seja condenado. Mas, se Trump chegar à Casa Branca, especialistas acreditam que os processos contra ele perderiam a relevância enquanto ele permanecer no poder.
Outro julgamento federal deve começar em 20 de maio na Flórida, no caso em que Trump é acusado de levar documentos confidenciais para sua residência privada após deixar o poder e de obstruir esforços do governo para recuperar o material.
Além disso, Trump começa a ser julgado em 25 de março em Nova York, no processo que o acusa de falsificar registros comerciais para ocultar dinheiro pago à atriz pornô Stormy Daniels e encobrir um suposto caso amoroso com ela.
Um quarto julgamento deve ocorrer no Estado da Geórgia, onde Trump é acusado de interferir na eleição.
O ex-presidente americano enfrenta ainda outras pendências judiciais, entre elas um caso de difamação e outro de fraude.
Tantos indiciamentos criminais não parecem ter prejudicado as chances de Trump. Diversas pesquisas de intenção de voto indicam que, em uma eleição geral, o ex-presidente estaria empatado ou até à frente de Joe Biden, o presidente democrata que deve concorrer à reeleição.
Os processos judiciais têm recebido cobertura intensa da imprensa, fazendo com que Trump receba mais atenção e espaço do que seus adversários. Além disso, seus apoiadores continuam fiéis, e muitos acreditam que as acusações são injustas.
A descentralização do sistema americano faz com que, apesar das várias investigações e acusações contra Trump, não tenha havido uma resposta tão rápida quanto houve no Brasil, onde Bolsonaro foi declarado inelegível seis meses após ter deixado o poder.
Mas a rapidez no processo brasileiro, segundo parte das avaliações, também foi acompanhada de críticas.
Nos Estados Unidos, não há uma figura como a de Alexandre de Moraes, ministro do STF e presidente do TSE, que foi criticado por alguns em sua atuação nos casos envolvendo Bolsonaro, sendo às vezes questionado se não estaria indo além de suas atribuições.
"O caso brasileiro foi um caso das instituições funcionando bem, ou foram indivíduos e algumas instituições fazendo o que tinham de fazer, e o que estava disponível para eles, a fim de impedir um (político) autoritário?", questiona Winter.
Nos Estados Unidos, os esforços dos Estados que tentam tirar o nome de Trump das cédulas são criticados por alguns que consideram essas iniciativas prejudiciais à democracia e acreditam que os eleitores devem poder decidir.
"Vejo um conflito", afirma Winter. "Parte de mim diz que um tribunal não deveria tomar uma decisão sobre uma eleição presidencial. Mas outra parte diz que, se um candidato cometeu um crime, e se os tribunais estão agindo de acordo com a lei, talvez essa seja a consequência."
Winter ressalta que a maioria das pessoas acredita que a decisão sobre as cédulas nos Estados Unidos, a cargo da Suprema Corte do país, será favorável a Trump.
"Se ele for impedido (de disputar a eleição) nesse estágio tão avançado do processo eleitoral, isso destruiria o país", afirma. "É muito diferente fazer esse tipo de coisa em um ano eleitoral do que fazer seis meses após a pessoa deixar o poder."
Winter destaca outras diferenças importantes entre Brasil e Estados Unidos.
Uma delas, segundo o analista, é que "os brasileiros entendem por experiência própria a ameaça de um líder autoritário", ao contrário da maioria dos americanos.
Outro fator é o sistema partidário, que no Brasil tem diversas siglas e, nos Estados Unidos, é dominado por apenas dois partidos, o Democrata e o Republicano, que hoje é controlado por Trump.
"O Brasil tem muitos partidos, e os Estados Unidos têm muito poucos", diz Winter. "E Trump conseguiu controlar seu partido de forma mais eficaz, mesmo em momentos em que parecia que ele poderia estar acabado."
Winter também considera os Estados Unidos muito mais polarizados politicamente que o Brasil.
"Acho que a maioria dos brasileiros ainda vota com base em seus bolsos e não está muito polarizada em um campo ou em outro", afirma. "E acho que isso torna o processo de cicatrização mais fácil do que nos Estados Unidos."