Professor que trocou mundo corporativo por escola pública alerta alunos sobre perigos das redes

(FOLHAPRESS) – No dia 6 de agosto, o influenciador digital Felca sacudiu a internet ao publicar o vídeo “Adultização” -que denuncia a exposição de crianças e adolescentes nas redes sociais e já acumulou 50 milhões de visualizações. Uma semana depois, o tema já havia chegado à sala de aula na escola estadual Luiz Antônio Fragoso, na zona leste de São Paulo.
Quem levou o assunto da vez para uma turma de 1º ano do ensino médio foi o professor Denis Cléber Gomes. 44. Denis, que leciona sociologia, geografia, história, geopolítica e robótica, também divide uma disciplina eletiva com Rute Cipriano, professora de língua portuguesa.
Enquanto ela trabalha a parte mais técnica do português, ele entra com o repertório sociocultural, que os estudantes constroem enquanto praticam produção textual, construção de argumentação, coerência e coesão, entre outras habilidades.
Quando o vídeo de Felca viralizou, Denis planejava discutir trabalho infantil, mas decidiu ajustar o rumo para contemplar adultização. Além de contextualizar o assunto, ele e Rute organizaram um mesão de debates, em que os estudantes defendiam diferentes aspectos e pontos de vista.
“Construímos a base com eles, que, até então, não tinham conhecimento dessa palavra. Falamos não só sobre a sensualização nas redes sociais, mas sobre o fenômeno dos empreendedores e pastores mirins, do trabalho doméstico, da necessidade de cuidar dos irmãos”, conta.
A Folha de S.Paulo acompanhou uma aula com a turma, em que Denis e Rute estimularam os alunos a pensarem em causas, consequências e propostas de intervenção para o problema da adultização.
Para despertar os estudantes da sonolência típica do primeiro horário, o professor propunha dinâmicas, como cada aluno ter que escolher um colega para contra-argumentar. De vez em quando, citava artistas como Racionais MC’s, Charlie Brown Jr. e Raimundos, fazia alguma piada e puxava salvas de palmas para quem expressava sua opinião.
Pouco a pouco, os jovens foram se soltando e trouxeram para o debate temas que fazem parte do seu dia a dia: filtros virtuais que modificam o corpo, padrões irreais de beleza, transtornos alimentares, crises de ansiedade, o estigma de fazer terapia, o vício em redes sociais e até a responsabilidade de agirem como “psicólogos” dos pais.
“É muito gratificante ver como eles desenvolveram repertório e senso crítico para se posicionar –seja na prova do Enem ou com um colega ou alguém da família”, diz o professor.
Ele vem lidando com desafios concretos relativos à adultização: é tutor de um estudante que falta às aulas para gravar vídeos para seu canal, que tem 20 mil seguidores. “Já lecionei em uma escola próxima a uma produtora de funk e acontecia a mesma coisa. Eles alcançam alguma notoriedade e acham que não precisam aprender português, sociologia. E quando acabar, o que farão da vida?”, questiona.
Do mundo corporativo para a educação
Denis tem uma trajetória pouco comum na educação pública: formado em administração com MBA em “supply chain” (cadeia de suprimentos), ele trabalhou 22 anos com logística em grandes empresas e decidiu trocar o mundo corporativo pela sala de aula.
Incentivado pela esposa, também professora, formou-se em história e, depois de conciliar os dois trabalhos, viu que o que queria mesmo era lecionar. “Ficou evidente que o meu coração bate pela educação. Mesmo quando trabalhava em logística, eu desenvolvia treinamentos e achava essa a melhor parte”, conta.
A decisão surpreendeu os colegas. “Eu já tinha um currículo consolidado, então foi um baque. Mas não me arrependo. Ganho menos, tenho menos estabilidade, porém estou mais feliz.”
Segundo Denis, porém, falta respeito em relação à profissão no Brasil. Uma de suas queixas é ser professor temporário -a chamada categoria O- e, por isso, não ter estabilidade nem benefícios como plano de saúde. “É a uberização da educação: aquele vínculo rápido, sem plano de carreira, tendo que renovar o contrato com frequência”, diz ele, que, em quatro anos, passou por sete escolas, preenchendo vagas existentes.
Dentro da sala de aula, o desafio é manter o foco dos adolescentes. “A atenção deles dura o tempo de um vídeo de TikTok. Em uma aula de 50 minutos, grande parte da turma, depois de dez minutos, já não absorve mais nada.”
Sua estratégia é desenvolver metodologias ativas, para além do trio tradicional lousa-caderno-carteira -que vão de discussões em formato de “aquário” (debate circular e interativo com rodízio de participantes) a “piadas de tiozão”. “A piada boa você acaba esquecendo, mas a piada ruim ninguém esquece. E aí eles se lembram também do conteúdo”, brinca.
Ele também recorre a novas tecnologias: usou um app de inteligência artificial para transformar em música as redações dos estudantes sobre temas como violência, bullying e racismo. Essas composições tocam no lugar da sirene na escola, para sinalizar a troca de aulas.
“Também sou da periferia, e, da mesma forma que a música me trouxe conforto, pode ser que ajude algum dos meninos”, diz. “Hoje, estar em uma sala de aula é o que me faz acordar todo dia.”
Como abordar adultização nas escolas
Escolas podem ajudar a combater a adultização nas redes de várias maneiras, segundo especialistas ouvidos pela Folha. Para começar, elas precisam ser um ambiente de contraponto à lógica da queima de etapas, afirma Ana Claudia Leite, gerente de educação do Instituto Alana. “Isso significa valorizar a infância, o brincar livre, as linguagens expressivas, o contato com a natureza, o protagonismo não vinculado ao influenciador digital”, exemplifica.
Em sala de aula, o tema pode ser aprofundado em debates sobre oportunidades e riscos trazidos pelo ambiente digital, dentro de disciplinas como sociologia, filosofia e português. “É interessante falar sobre a exploração comercial que acontece ali, os desafios online, o impacto dos padrões estéticos sobre a saúde mental e física dos adolescentes”, afirma.
Cristina Cordeiro, pedagoga e diretora adjunta do Instituto Liberta, diz que a maioria dos pais e cuidadores não tem informações detalhadas sobre o que é próprio de cada idade e os processos de transformação típicos da transição para a adolescência e para a vida adulta.
“A escola tem um papel na aquisição desse conhecimento. A importância do brincar, o controle do tempo e dos acessos ao meio digital, os riscos da exposição precoce à pornografia são temas essenciais de serem debatidos.”
Cordeiro defende que professores e gestores escolares fiquem atentos ao comportamento dos estudantes para identificar sinais preocupantes: desinteresse por coisas próprias da idade, dificuldade de se inserir em brincadeiras e conversas informais da turma, preocupação excessiva com a aparência e comportamentos sexuais precoces são alguns deles.
Leite, do Instituto Alana, também defende a observação dos estudantes -desde que “cuidadosa, respeitosa e sensível”. “É importante não entrar em um lugar de censura ou de julgamento moral. O que deve haver é um interesse genuíno de perceber o que está descompassado em relação à faixa etária, além de uma escuta respeitosa”, fiz.
Marina Fragata, diretora de políticas públicas da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, lembra que algumas manifestações da adultização -como o trabalho infantil ou a necessidade de cuidar de irmãos mais novos- têm raízes nas desigualdades do país.
“Não podemos culpabilizar apenas a família: proteger e garantir o desenvolvimento pleno das crianças depende de uma força-tarefa da sociedade.”
Quem Ensina o Brasil: Denis Cleber Passos Gomes, 44
Professor há: 4 anos Para quantos alunos dá aula: 180 estudantes Formação: História e administração de empresas Disciplinas: história, geografia, geopolítica, sociologia e robótica 51,6%
era o percentual de professores temporários nas redes estaduais de ensino em 2023, segundo o Inep
Este texto faz parte da série Quem Ensina o Brasil, uma parceria da Folha com a organização Todos pela Educação.
Fonte: Notícias Minuto